Devoção (Ed. Zouk, 2021) é a primeira narrativa longa de Guto Leite, que é um dos mais destacados militantes multitarefas das letras brasileiras de hoje: cantor, compositor, poeta, professor, crítico literário, ativista das redes. Ele conhece como poucos os problemas da expressão literária e os eleva ao plano de necessidades do contemporâneo com raríssima competência.
Livro para ler e reler, Devoção se fixa, como estrutura romanesca, na velha exigência de fazer literatura para interrogar os meandros da dialética entre poesia e história. Desde Aristóteles, sabemos que, se esta registra o que aconteceu, aquela narra o que poderia ter acontecido. Obras literárias válidas não ignoram essa dialética, nem a encaram de modo inocente, mecânico ou simplista. Muito pelo contrário: obras que ficam e nos interessam sempre fazem de tal dialética o alimento mais essencial da forma literária.
Trata-se de algo que a Ana Paula Pacheco captou muito bem e sumarizou esplendidamente na abertura da orelha do livro: “Será ainda possível sonhar ou recolher o mundo através da poesia?”. Mais do que responder à pergunta, Guto Leite busca com sua narrativa uma forma para este questionamento, cuja lei básica é a da dicotomia entre o “voo” e o “antivoo”. Em certa passagem da obra lemos: “o voo dos homens é um antivoo” (p.88). O trecho enquadra-se nos derradeiros momentos do fluxo de especulação científico filosófica do personagem viajante, que vocaliza o âmbito do “voo”, mas diz respeito à totalidade da forma, pois menciona o outro âmbito da obra, o do “antivoo”, aquele dos sujeitos sociais imersos em situações sociais concretas. Um dos âmbitos puxa o leitor para o delírio, ou outro, para o desespero. Dessa tensão, o resultado é, certamente, a força crítica da obra, que reitera a pergunta sobre o que pode, da dinâmica de relações que compõe o mundo social, expor, através da ação ficcional, a poesia.
Leia-se e releia-se o livro para apurar o quanto esses mundos se intercambiam sob um signo unívoco. O âmbito do “antivoo”, composto de cenas cheias de uma trivialidade triste, de uma linguagem desenvolvida na brutalidade do concreto e de certa ironia melancólica, recolhe verdadeiros instantâneos do Brasil de hoje. O autor expõe o país em seu caminho à miséria, sendo, pois, depoimento a quente dos anos pós-golpe de 2016. No geral, os episódios remetem a processos de perda, atravessando várias camadas sociais e considerando como centro o sujeito de que decai na escala da vida de geneticista a morador de rua. Assim, tais episódios têm, para usar a palavra título, “devoção” pela miséria”.
No outro plano, o do “voo”, um delirante, e às vezes irritante narrador, acompanha o “voo” de um pássaro desejando a sua liberdade numa construção de uma espécie de poética da mônada que depende de uma política do isolamento em relação ao mundo narrado nos fragmentos. Também ao nosso contemporâneo brasileiro esse âmbito remete, pois o corte cientificista da enunciação do viajante alude a certo tipo de “antiação” (poética, política, científica) sem povo, descomprometida com o que abriga a raiz humana de todos os problemas e questões. Trabalhando a intersecção entre esses dois mundos está o hábil costureiro que é o autor, exibindo a urgência de que suas atmosferas sejam submetidas a uma inteligência crítica que mira o mundo da reificação. Daí nasce a universalidade do relato, embora ele esteja calcado num certo Brasil, num determinado Sul, numa atmosfera inquestionavelmente gaúcha. O local, pois, jamais se torna pitoresco em Devoção, pois acumula o peso da humanidade que se debate entre os fetiches do capital. O local dialoga com o universal porque a região invoca a tipicidade do subdesenvolvimento haurido pelo capitalismo contemporâneo.
“Voo” e “antivoo” são faces de nossa “devoção” diária, e em chave periférica, ao capitalismo e lógica da mercadoria. Para examinar esse mundo, é preciso recompô-lo em um outro plano, exumando-o do cotidiano que talha conexões e torna disfuncional a essência. Esse outro plano é o da ficção, que, na obra de Guto Leite, aposta nas descontinuidades e na recomposição da sociedade segundo leis próprias de um narrar que provoca a linearidade dos modelos composicionais fetichizados. O leitor se lembrará da Clarice de A hora da estrela, do Guimarães Rosa do Grande Sertão. Mas há também o sotaque gaúcho que vira uma forma (em sentido pleno) e está amparado na boa tradição de Simões Lopes Neto e de Dionélio Machado; há, ainda, o realismo miúdo dos cronistas agudos de um tempo, como Machado de Assis. Sobretudo, há algo de Francisco Alvim abastecendo as faces de “voo” e “antivoo” da poesia envenenada que Guto Leite constrói em Devoção.
Quem ler a obra com atenção e desejo crítico achará muito mais do que aqui se esquematizou. Tudo isso torna o livro uma alta realização de “narrativa-problema” brasileira contemporânea e uma leitura inescapável para interrogar, através da poesia, o nosso tempo.
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