top of page
Buscar
Foto do escritorAlexandre Pilati

Resenha de Pier Paolo Pasolini: Poesia, paixão e Política

Atualizado: 26 de out.




Por Yuri Brunello

(Publicado originalmente em: Remate de males. Campinas-SP, v.44, n.1, pp. 413-417, jan./jun. 2024).


Pasolini: poesia, paixão e política, de Alexandre Pilati, é uma monografia sobre o escritor e cineasta italiano, lançada logo após o ano de 2022, centenário de seu nascimento. O volume divide-se em duas partes: a primeira aborda a coletânea de líricas Le ceneri di Gramsci, impressa em 1957, ressaltando os laços existentes entre a prática poética de Pasolini manifestada no mesmo volume de versos e o conceito de catarse elaborado por Georg Lukács; a segunda aborda – mas sob outra perspectiva, qual seja, a da comparação com A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, e a questão dos sistemas literários “periféricos” no pós-guerra – tanto Le ceneri di Gramsci quanto problemáticas referentes a uma fase posterior da produção poética e intelectual de Pasolini, como as intervenções polêmicas incluídas nos Scritti corsari ou as divergências político-culturais com Ítalo Calvino. Os primeiros três capítulos do trabalho de Pilati são declaradamente lukacsianos, mas a marca do Lukács marxista é evidente em todo o volume. A escolha de tal paradigma crítico chama atenção. No Brasil, Lukács é um filósofo que nunca deixou de ser lido e valorizado; na Itália, porém, o seu nome, no âmbito do debate literário, perdeu centralidade desde a década de 1980. Pode parecer um paradoxo, mas foi justamente Pasolini um dos intelectuais que contribuíram para o atual ofuscamento do nome de Lukács no contexto da crítica italiana, manifestando discordâncias com o teórico húngaro, tanto no tópico do perspectivismo quanto em relação ao problema do estilo. Contudo, a abordagem lukacsiana de Pilati revela-se bastante proveitosa, permitindo uma leitura da trajetória pasoliniana segundo uma ótica que nada tem de óbvia, principalmente quando o modelo teórico lukacsiano se conjuga com uma outra específica inspiração: o marxismo que, no segundo pós-guerra, refletiu sobre o Brasil, a sua literatura e a sua cultura a partir do próprio Brasil como periferia do Capital.


Por isso, na monografia de Pilati, são recorrentes os nomes de Roberto Schwarz, Michel Löwy e Antônio Candido. Desse modo, fica claro que interpretar a produção de Pasolini à luz de conceitos elaborados por intelectuais que investigaram problemáticas literárias pelo viés de um marxismo atento às peculiaridades culturais, políticas e econômicas brasileiras promove uma melhor reflexão sobre aquilo que hoje é chamado de Sul Global. Pilati nos ajuda a compreender com nitidez por que e quanto Pasolini foi um teórico do Sul Global ante litteram. Apesar disso, Pilati não é o primeiro a se deparar com o contraste entre a cultura metropolitana e a cultura periférica nos textos literários e nos filmes pasolinianos. No Brasil, foram vários os autores de pesquisas sobre Pasolini que abordaram tal tópico, de forma extremamente fecunda, como Maria Betânia Amoroso e Ismail Xavier, Michel Lahud, Gesualdo Maffia, Vinícius Nicastro Honesko, Alessandra Vannucci, Cláudia Tavares Alves, Davi Pessoa etc. O fato não pode surpreender: na obra de Pasolini, o Sul é uma realidade crucial tanto como imaginário poético quanto como extratextualidade geográfica. Em um primeiro momento, Pasolini considera sobretudo o Sul da Itália uma das expressões mais pulsantes da “autenticidade humana não fetichizada” (p. 96). A propósito disso, em Le ceneri di Gramsci, no poema “Récit” o Sul materializa-se na Roma habitada por ele. É um Sul, cujas vozes pertencem a uma ancestralidade que vai além da história. Ainda hoje, resiste, na Itália, o conflito entre o moderno e o arcaico. Falar em Norte e Sul da Itália significa remeter a uma fratura sobre a qual o próprio Gramsci, em 1926, esboçou o escrito Alcuni temi della quistione meridionale, analisando uma sociedade nacional cindida entre o universo “metropolitano”, isto é, o setentrião industrializado, e o mundo meridional “subdesenvolvido”.


O contraste amplia-se com o progredir da produção estética pasoliniana: de nacional, a laceração passa a ser global, envolvendo África, Yemen, Iran, América Latina, pois Pasolini, desiludido por causa da adesão das classes subalternas italianas ao projeto hegemônico de classes dominantes sempre mais tecnocratizadas, olha – em um primeiro momento utopicamente e, em seguida, com trágico pessimismo – para as periferias situadas às margens do capitalismo transnacional. De maneira oportuna, o sexto capítulo de Pasolini: poesia, paixão e política apresenta um título que se conclui com um sintagma schwarziano: “Uma rua começa em Drummond e chega em Pasolini: notas sobre poesia participante à periferia do capitalismo” (p. 141).


Comparar o Drummond de A rosa do povo com o Pasolini de Le ceneri di Gramsci significa projetar em um plano global, como o faz Pilati por meio de uma brilhante e original operação crítica, as contradições, poeticamente representadas de modo singular pelos dois escritores, entre subdesenvolvimento e progresso. Na obra de Pasolini, já na década de cinquenta, o desenvolvimento não é sinônimo de progresso emancipador. Se há um processo civilizatório democrático e radicalmente transformador, há também “um progresso (o avanço da história cujos protagonistas são as classes populares) sem desenvolvimento (o avanço da história em que as classes populares caminham a reboque dos interesses hegemônicos)” (p. 94). Em “Récit”, fala-se em vozes meridionais, cujo clamor é ignorado pela história. Tais vozes experienciam a dimensão da autenticidade e não sofrem um atraso reificante. Subtrair-se à história, negar o desenvolvimento, nesse caso, não responde a uma dinâmica reacionária, mas se configura como um ato de oposição à alienação capitalista crescente. É também de Schwarz a epígrafe com a qual se inicia Pasolini: poesia, paixão e política: “o trabalho artístico é uma forma de pensamento fora do trabalho teórico” (p. 11). Concebendo a expressão estética como internamente marcada pelas relações sociais de força, Schwarz nega a autorreferencialidade da forma literária, pois ele entende o fazer poético como algo que transcende a mera dimensão estética. A frase da epígrafe, em seu contexto original, faz parte de uma entrevista na qual Schwarz conclui seu raciocínio lembrando que “a qualidade artística não deixa de ser um ‘fait social’, como diz Adorno, e a forma, mesmo a mais sutil, não deixa de ter valor de documento histórico a seu modo” (Schwarcz; Botelho, 2008, p. 151).


Convém frisar que é patente como, na maioria das obras de Pasolini, as tensões formais correspondem nitidamente a impasses sociais, como queria Adorno e como quer Schwarz. Pilati traz para a sua análise um princípio teórico de Robert Kurz: o conceito de “sujeitos monetários sem dinheiro” (Schwarz, 2021, p. 173), determinante para a evolução do pensamento schwarziano. Nos poemas de Le ceneri di Gramsci, os jovens das periferias romanas, das borgate, como ainda não são “sujeitos monetários sem dinheiro”, “anunciavam estética e sensualmente uma vida ‘fora do valor’” (Pilati, 2022, p. 174). Muitas das criações artísticas do Pasolini da segunda metade da década de 1950 podem ser concebidas como expressões dessa incongruente sobreposição de centro e periferia. É claro que Pasolini não foi o único escritor italiano do século passado ao qual se pode aplicar a visão de Adorno (1988, p. 15), segundo a qual a forma estética seria “conteúdo sedimentado”. Foi o próprio Gramsci quem relacionou a produção de Luigi Pirandello a uma dissonância determinada por uma esquizofrênica convivência, na sociedade italiana da época, de elementos “periféricos” e elementos “metropolitanos”, como se Pirandello, do outro lado do Atlântico, fosse um companheiro de viagem do Machado de Assis de Memórias póstumas. Gramsci conseguiu detectar em Pirandello “a consciência crítica de ser ao mesmo tempo, ‘siciliano’, ‘italiano’ e ‘europeu’” (Gramsci, 2002, p. 234).


Não é preciso conhecer em profundidade a produção do historiador Immanuel Wallerstein (1974, pp. 106-107) e a sua tripartição do sistema-mundo, que tanto deve aos teóricos latino-americanos da dependência, para entender que siciliano significa “periférico”, italiano significa “semiperiférico” e europeu significa “metropolitano”, ou seja, diz respeito ao “centro”, se quisermos traduzir em um léxico decolonial os termos da questão. Tal discrepância econômica, política e social emerge em Pirandello, pelo menos até a década de 1920, por meio do humorismo. Em Pasolini, tal incongruência estrutural se traduz, às vezes tragicamente, em uma dialética sem síntese. Pilati, no seu texto, não faz referência às “ideias fora do lugar”, privilegiando, no plano das ferramentas teóricas, o conceito benjaminiano de “materialismo antropológico”, assim como foi entendido por Löwy, quer dizer, repleto.


Contudo, é inevitável, considerando a natureza do referencial teórico de Pasolini: poesia, paixão e política, que o leitor se interrogue: aproximar as “ideias fora do lugar” à coexistência, própria da produção pasoliniana, entre moderno e arcaico faz algum sentido? Pasolini: poesia, paixão e política, embora não queira fornecer uma resposta peremptória, tem o mérito de sugerir uma pergunta assaz relevante, indicando um caminho fértil para futuras pesquisas.


REFERÊNCIAS


ADORNO, Theodor Ludwig. Teoria estética. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1988. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho; Luiz Sérgio Henriques; Marco Aurélio Nogueira. Vol. VI. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SCHWARCZ, Lilia Moritz;

BOTELHO, André. Ao vencedor as batatas 30 anos: crítica da cultura e processo social: entrevista com Roberto Schwarz. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, 2008, pp. 147-160. WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Vol. I. Trad. Carlos Leite, Fatima Martins e Joel de Lisboa. Porto: Afrontamento, 1974.


3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page