O interesse em refletir sobre abordagens didáticas e métodos de ensino de literatura brasileira e mediação de leitura literária sempre esteve presente em minha trajetória de professor e de pesquisador universitário.
Uma primeira aproximação sistemática a esse âmbito de questões foi possível em Poesia em sala de aula (2017), livro no qual, partindo da obra clássica de Antonio Candido (Na sala de aula), eu procurava meditar sobre alguns elementos essenciais para uma leitura do texto literário que, em situações de ensino aprendizagem
, estivesse à altura de sua consistência eminentemente estética. Nessa obra pude organizar algumas noções e registrar certas prá ticas que ainda hoje entendo serem importantes para o princípio que animou o livro e que pode ser traduzido pelo lema: “o lugar da literatura é a escola, mas é preciso desescolarizar o ensino de literatura”. Em termos gerais, naquela oportunidade, eu tentava defender, com base em leituras e em experiências práticas e, sobretudo, calcado na formulação de Antonio Candido de literatura como “direito incompressível”, a importância de que as aulas de literatura, no que se refere à poesia, transcendessem a dicotomia do acento na técnica ou na explicitação do conteúdo, como forma de sugerir modos de abordagem que estivessem à altura da integridade dialética entre forma e conteúdo que lastreia a experiência estética capaz de afetar o leitor jovem ou em formação.
Amparado nessa experiência de organização de inquietações, reflexões, estudos e práticas no referido livro, e no diálogo com leitores de literatura, fossem eles estudantes de licenciaturas ou professores em exercício da profissão, é que cheguei a um terreno de pesquisa e ensino novo para mim, que envolvia a problematização do papel do texto literário no ensino de português como língua estrangeira, adicional ou de heran ça. Apesar de ter sido, por alguns anos, docente responsável, na Universidade de Brasília, pelas disciplinas de Literatura no curso de Português Brasileiro como Segunda Língua – PBSL, o adensamento das reflexões nesse âmbito só foi possível graças ao início, em 2018, de uma colaboração com o Departamento Cultural e Educacional (DECED) do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, sob a coordenação do então Secretário Bruno Miranda Zétola.
O conjunto de projetos desenvolvidos durante esse período de cooperação foi de escopo bastante amplo e resultou numa multiplicidade de produtos desenvolvidos. Os textos que compõem esse livro são, assim, um retrato parcial desses produtos, uma vez que representam ou reflexões diretamente desenvolvidas para os produtos resultantes da cooperação com o Itamaraty ou reflexões derivadas de processos decorridos nos anos que separam a publicação desta obra dos primeiros contatos com o DECED.
De todo modo, é fundamental dizer que foi no entusiasmo da convivência intelectualmente estimulante e culturalmente desafiadora com a equipe coordenada por Bruno Zétola (e que envolveu contato mais direto com o Prof. Nelson Vianna e com o secretário Krishna Monteiro, entre tantos outros professores e gestores do Itamaraty) que o melhor dos apontamentos aqui reunidos pode se estruturar com algum grau de interesse para um público mais amplo do que aquele atendido de forma imediata pelos projetos que iam sendo desenvolvidos.
A título de registro memorial e de tributo a esses que colaboraram com os projetos é que vale, talvez, nesta oportunidade, nomear algumas das ações que pude coordenar e realizar e que estão espelhadas em vários capítulos deste Literatura brasileira no exterior. Nesse período, pude coordenar e desenvolver, com a colaboração de vários colegas ligados à rede de ensino do Itamaraty no exterior, projetos estruturantes com foco prioritário no ensino de língua portuguesa e de literatura brasileira, bem como relativos à difusão do idioma e da cultura do país. Primeiramente, mencionem-se duas propostas curriculares: a Proposta curricular para ensino de literatura bra sileira e a Proposta curricular para ensino de literatura infantil/ infantojuvenil. Em ambos os casos, o objetivo principal era de senvolver um material acessível e orientador aos profissionais que estivessem dedicados no exterior ao ensino de português como língua estrangeira/adicional ou como língua de herança, especialmente considerando-se o papel do texto literário nos contextos de ensino e aprendizagem do idioma na vertente bra sileira. Atrelado à estruturação desses materiais de orientação didático-pedagógica, desenvolvi o protocolo de planejamento das unidades didáticas de literatura (UDLITs) a fim de ajudar a rede de ensino do Itamaraty no exterior com escolhas de te mas e formas de trabalho específico com o texto literário em contextos de ensino de português como língua estrangeira, especialmente considerando a realidade dos centros culturais brasileiros. Para esses centros foram ministrados, durante esse período, alguns cursos de formação dirigidos aos docentes ali atuantes e outros professores da comunidade local, como foi o caso dos cursos de formação em Beirute, em março de 2019, em Lima, em dezembro de 2019, em Buenos Aires, em maio de 2022, em Córdoba, em setembro de 2022, em Helsinque, em outubro de 2022, na Bolívia, em março de 2023, além de outros, que foram realizados via plataformas de interação remota, de alcance mais geral, como as “Oficinas de Formação básica de mediadores de escrita criativa e de leitura literária”, dirigidos à organização de atividades preparatórias para as Olimpíadas de Português como Língua de Herança de 2022 e de 2023 Desdobramento direto da Proposta curricular para ensino de literatura brasileira foi a elaboração, em conjunto com a equipe da Organização dos Estados Ibero-americanos – OEI, da “Biblioteca Básica de Literatura Brasileira e agraciados com o Prêmio Ca mões”. Lançada em fevereiro de 2022, durante a reunião da CILPE em Brasília – DF, tal biblioteca básica inspirava-se no objetivo da Proposta curricular de abastecer os centros culturais brasileiros com um rol mínimo de obras literárias que fosse representativo do processo de formação do nosso sistema literário e pudesse, assim, apoiar o trabalho docente, estimular o interesse discente e ajudar a promover interações com a comunidade local através dos textos literários brasileiros. Com o apoio da OEI, o projeto se amplificou e tomou contornos de estímulo a um diálogo pluricêntrico de literaturas voltado a leitores de literatura em língua portuguesa ao redor do mundo.
Outra iniciativa que pude coordenar, juntamente com o Prof. Nelson Vianna, foi o volume Panorama da contribuição do Brasil para a difusão do português. Lançada em maio de 2021, a publica ção reuniu um conjunto de renomados especialistas em diversos campos nos quais a língua portuguesa do Brasil destaca-se, além de uma série de depoimentos de artistas da palavra da língua por tuguesa, que apresentaram relatos pessoais sobre a importância da língua e da literatura brasileira na sua formação de artífices de palavra. Nos moldes de um atlas, a publicação oferece uma visão ao mesmo tempo ampla e detalhada do impacto do português no mundo, através de iniciativas brasileiras. Derivado da experiência de recolhimento de depoimentos de autores estrangeiros sobre a influência do português do Brasil e da literatura brasileira em suas obras artísticas surgiu o projeto da série de Podcasts Literatura Brasileira pelo mundo, que visa mapear um pouco da repercussão da literatura brasileira no exterior através de temporadas dedicadas a: 1) autores latino-americanos; 2) autores de língua portuguesa; 3) autores brasileiros residentes no exterior. A primeira temporada encontra-se já disponível nas plataformas YouTube e Spotify e as demais, nesse momento, encontram-se em fase de planejamento.
Além desses projetos, realizaram-se algumas iniciativas precursoras, seja pelo método, seja pelo tipo de alcance, o que proporcionou olhares inovadores sobre a repercussão da literatura brasileira no mundo. A primeira delas é o Glossário de literatura brasileira para leitores estrangeiros, cujo objetivo primordial era fornecer material didático autêntico para professores de português como língua estrangeira dirigido a alguns aspectos essenciais da constituição da nossa literatura: movimentos e tendências, auto res e obras, temas transversais e personagens emblemáticos. Um primeiro conjunto de verbetes do Glossário, cuja curadoria esteve sob minha responsabilidade, em colaboração com a então leitora brasileira da Universidade de Córdoba, Bárbara Nayla Piñero, encontra-se disponível na plataforma www.linguaportuguesa. digital e em formato livro digital lançado pela Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG. A outra iniciativa que vale aqui destacar foi o curso ensejado pelo bicentenário da independência do Brasil, em 2022, intitulado 200 anos de nacionalismo literário no Brasil e desenvolvido sob a minha coordenação pedagógica. O aspecto inovador do curso está no fato de reunir alguns textos importantes para a constituição e a problematização da ideia de nação através da literatura brasileira, que eram a base da realização de aulas por membros da rede de leitorado brasileiro, professores de centros culturais brasileiros, intelectuais estrangeiros e professores de universidades do Brasil, as quais foram gravadas, legendadas e posteriormente disponibilizadas no canal YouTube (https://www. youtube.com/@200anosdenacionalismoliter8).
A citação desses trabalhos, como já dito, é fundamental pelo que eles ajudaram a estruturar e constituir os capítulos deste volume. Cumprindo, portanto, uma função de registro e de desdobramento desses projetos, este livro está dividido em duas partes. Na primeira, são reunidos textos que representam refle xões de ordem teórica e metodológica, cujo fito principal será o de contribuir para a discussão acerca do papel da literatura no contexto específico de ensino de língua portuguesa no exterior. A segunda parte, é uma miscelânea de textos sobre a literatura em língua portuguesa e/ou brasileira voltados para interlocuto res estrangeiros ou residentes no exterior. Neles são abordados, além de autores da nossa literatura, temas relativos às figurações do nacionalismo na literatura e na canção e à contribuição da literatura para a constituição de uma percepção concreta do ca ráter pluricêntrico da língua portuguesa. As conferências sobre autores literários brasileiros e sobre a experiência brasileira vista através de canções do século XX foram pensadas e estruturadas com a disposição de alcançar um público estrangeiro interessado na literatura brasileira, com razoável conhecimento da língua portuguesa. Por isso, são textos em que procuro aproveitar muito das contribuições da academia, mas exercitar um tipo de escrita um pouco mais livre e ensaístico, sem exagero de citações e com uso limitado de jargão especializado. Recolhidas aqui, essas conferências poderão ser também alvo de interesse de professores de língua portuguesa e literatura brasileira no exterior, que podem utilizá-las como textos base para aulas e outras interações com os estudantes.
Em 2022 foi criado o Instituto Guimarães Rosa, com o objetivo de organizar e aprofundar a presença da cultura, da literatura e da língua do Brasil no exterior. Esse importante marco histórico estimulou também que este livro viesse a ser organizado, projetando, como sentido último, o de contribuir singelamente para constituir o lugar da literatura brasileira, em termos de métodos de ensino e de reflexões sobre autores decisivos em sua formação, nesta nova casa de Rosa que se espraia mundo afora. São nossos interlocutores, especialmente, os educadores brasileiros que trabalham no exterior, que encontrarão aqui, talvez, novos elementos para enriquecer seu trabalho e sua reflexão sobre a língua portuguesa e a literatura brasileira no exterior.
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