As notas a seguir serviram de roteiro para uma leitura de poemas realizada em 25 de outubro de 2024 no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília. Nesse dia, eu e o poeta João Bosco Bezerra Bonfim dividimos o palco para ler e comentar alguns poemas de nossa autoria. Quem sabe este esquema para a leitura em voz alta interesse a quem deseje conhecer mais intimamente os poemas apresentados na ocasião. Em atenção aos mais curiosos, compartilho o link com o conjunto de poemas selecionados em arquivo PDF:
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Sendo um drummondiano convicto, conheço muito bem os riscos de menosprezar o

conselho do poeta: “Não faças versos sobre acontecimentos”. Entretanto, sei também que esse verso que inicia a “Procura da poesia” pode ser lido e aproveitado pelo avesso, pois não deixa de ser estranho que a negação dos acontecimentos esteja tão patente em um livro voltado para o comentário do mundo em guerra, A rosa do povo. Fazer versos sobre acontecimentos, coletivos ou particulares, é uma das coisas que mais me estimula no ofício da criação poética. Outra é propor um diálogo da poesia com outras formas de arte. A seleção de poemas que escolhi para apresentar neste encontro de poetas ilustra isso. O que unifica esse bloco não coeso de poemas é o fato de que eles representam a tentativa de interpretar a realidade usando os acontecimentos ou outras artes como mediação essencial.
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O primeiro poema que vou ler está publicado em meu livro Prafóra (2007). Nele, reuni poemas que representavam um desvencilhar-se da figuração poética da minha cidade, Brasília, que fora o mote central dos poemas de meu primeiro livro sqs 120m2 com dce (2004). Estava, então, atento a fatos que disparassem assuntos poéticos capazes de me conduzir para fora dos limites da “província brasiliense”, nacionalizando ou internacionalizando mais a perspectiva lírica e social dos versos. Foi com essa ideia na cabeça que me deparei com uma notícia sobre um certo “índice mundial de felicidade”, em que a Finlândia aparecia como “o país mais feliz do mundo”. Imediatamente me lembrei do verso incontornável e inimitável de Manuel Bandeira: "Vou-me embora pra Pasárgada". E criei uma Pasárgada irônica contrastando poeticamente ideias clichê do Brasil e da Finlândia, para comentar o (para mim) estapafúrdio índice de felicidade, com o espírito autoirônico de fla-flu, que a nós brasileiros caracteriza quando o tema é disputar com outros povos a primazia da festa, da alegria, da felicidade. O resultado é o poema "Se eu morasse na Finlândia", cujo estribilho inspira-se na redondilha maior do mestre Bandeira.
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O segundo poema que leio se chama "Esculturas infinitas" e saiu em meu livro Sob linóleo vermelho (2021). Escrevi-o em Lisboa, onde passava, no final de 2020, uma temporada acompanhando minha mulher que estava como professora visitante na Universidade Nova de Lisboa. O título do texto é o mesmo de uma exposição que visitei na Fundação Kalouste Gulbekian, que tinha por objeto não as esculturas triviais, mas moldes de gesso para esculturas. Entre esses moldes, as figuras dos anjos eram predominantes e, partidas ao meio e deitadas em pedestais ou mesmo no chão, davam uma conotação humanamente patética ao velho chavão "anjos caídos". Ao mesmo tempo, os moldes de gesso para esculturas de anjos eram belíssimos, em sua perfeição formal e em sua fragilidade material. O segredo desse patético era o gesso e, também, o vazio. Não eram figuras inteiras, estavam sempre partidas e um pouco desfeitas pela óbvia fragilidade do material. De Lisboa usei no poema algumas imagens e sons, como as gaivotas ganindo contra o céu azul sobre o Tejo; o barulho do caminhãozinho recolhedor de garrafas de vidro que me acordava toda manhã com uma “chuva de vidros”; a fonética própria de algumas palavras lusitanas. Com esses elementos, desejei que o poema fosse construído em prosa poética, dividido em parágrafos e não em estrofes. A dimensão da prosa era, mais uma vez, inspirada em Bandeira, que escreveu o belíssimo e prosaico "Gesso", com o qual, em alguma medida, essas “Esculturas infinitas” dialogam.
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Amy Winehouse, cantora britânica que idolatro, morreu em 23 de julho de 2011, trucidada pela indústria do espetáculo. Um pouco depois dessa data, passeava com minha mulher em Madrid e vi em uma vitrine um quadro bonito, apesar de vulgar, que era a representação do seu belo rosto jovem, com uma fidelidade imensa ao condão de enigma que seus olhos antecipavam. Era uma pintura a óleo, simples e bela, que, entretanto, naquela vitrine, era usada para vender outras mercadorias fúteis, de que, por mais que tente agora, não consigo lembrar. Pensei comigo: “a mercadoria continua tentando aniquilar Amy. Mas ela continua, mesmo numa pintura vulgar, bonita como as suas canções”. O resto do passeio foi dedicado a criar um poema que representasse esse meu encontro com a beleza da cantora e do que uma beleza como essa pode significar para a nossa vida, a despeito da mercadoria e do espetáculo. Era um reencontro com ela, que, com a sua poesia vital, continuava existindo; por isso, o poema se chama "Você volta pra ela", em clara referência a uma de suas canções "Back to black", que diz, em um dos versos, “You go back to her...”.
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Queria agora fazer uma homenagem a um de meus poetas contemporâneos favoritos. Uma homenagem que, em seu interior, guarda outras. Ao rememorar Armando Freitas Filho, recentemente falecido, relembro Kafka, citado no poema, e homenageio também Antonio Candido, com quem Armando se correspondia. Ficou famosa a última carta de Freitas Filho a Candido, que não chegou a ser lida pelo destinatário, falecido antes da data pretendida de envio (o aniversário do mestre da Formação da literatura brasileira). Nela, Armando diz: “Gosto tanto de você. Parece que o conheço desde que nasci, pois é tão parecido com a gente da minha família: modo de ser, de se vestir, de falar, de ficar indignado. Neste dia em que escrevo, bem que gostaria de lhe dar um abraço daqueles apertados e até um beijo. [...] Penso no que eu poderia dizer e ouvir, construo conversas imaginárias que me parecem reais, já que tenho de cor o som de sua voz acompanhada por sua gesticulação de dedos compridos e finos como os de Murilo Mendes. É como ouvir e ver uma música e sua regência dentro de mim.” Que beleza tão rara essa a da inteligência sensível! Certa vez, Ronaldo Cagiano, que leu o meu Tangente do Cobre (2020) e contribui com a publicação com um belo texto de “orelh”, passou-me o endereço do Armando aconselhando-me a enviar o livro a ele. O conselho era bom e devia-se ao fato de que meu livro fora vencedor do Prêmio Candango de Literatura. Então, enviei o material, mais pela admiração ao poeta do que pela esperança de resposta. Eis que um dia me chega uma mensagem de e-mail do Armando, exatamente quando estava lendo uns contos de Kafka – e aquilo me pareceu lindo e absurdo. Armando, sem se alongar muito, dizia: “obrigado pelo livro, necessário e bom”. Lembrando da carta dele ao Candido e a leitura de Kafka, escrevi o poema "E-mail sem assunto ao Armando Freitas Filho", que saiu em Sob linóleo vermelho (2021).
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Festina lente é um lema latino cujo significado é: "apressa-te lentamente". É uma expressão que sempre me encantou, especialmente pelo conteúdo reativo à aceleração de tudo no contemporâneo. Um conteúdo que me parece condição da própria existência da estética. A meu ver, a arte é uma concretização objetiva da “pressa lenta”. Por várias vezes, veio-me a intenção de criar um poema que carregasse esse lema e a interpretação que tenho dele. Quando estive por uma semana em Beirute, capital do Líbano, em 2019 para ministrar um curso de literatura brasileira, visitei um museu que estava apresentando uma exposição com fotografias de jovens soldados do exército libanês e suas famílias. A mostra era tocante, pois as histórias de guerra que eram justapostas aos quadros com os retratos, eram cruentas, enquanto a fisionomia dos jovens, especialmente o olhar, e de suas famílias transmitiam um desamparo, uma tristeza e uma fragilidade tocantes – próprias da precariedade da vida humana. Ao mesmo tempo, fiquei fascinado com a beleza urbana e arquitetônica de Beirute, ao pé do Mediterrâneo, e a lucidez da decisão de deixarem alguns edifícios com marcas de bombardeios. Segundo me informaram: para lembrar as novas gerações da capacidade destruidora de uma guerra. Urbanidade bela e bombas, crueza da guerra e singeleza familiar dos jovens soldados: aí estavam tensões interessantes para um poema. Tudo isso me falava, não sei bem por que, a respeito do lema latino festina lente. E o poema se fez; como uma elegia dedicada aos meninos mortos em tantas guerras mundo afora.
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