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  • Foto do escritorAlexandre Pilati

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Atualizado: 15 de abr. de 2021


Luiz Aquila - "Pintura sobre tela"

"Piamente" é palavra que rejeitas. E rejeitas muito, dado que sempre foste incrédulo e impaciente. Rejeitas, acima de todas as coisas de teu ofício, mito do domínio total sobre o que se escreve. Renegas, desde sempre, a ideia senso comum de que artistas sabem exatamente o que querem dizer e que dominam plenamente os meios de dizê-lo.


Sempre te pareceu melhor pensar que nada é mais enganoso e tributário da fascinação pelo poder individual do criador. O artista, quando cria, deixa registrado um momento de desamparo e de conexão profunda com ferramentas que ele não criou. Este, pensas, é um momento em que ele assume que não se conhece tudo do objeto sobre o qual deseja escrever, que não é possível dominar plenamente os mecanismos que formam a poesia, porque as ferramentas que compõem o poético foram criadas coletivamente, ao longo da história.


Contra a grandeza enganosa e fetichista do gênio, preferiste assumir os limites fascinantes que abrigam e exprimem o ser comum, muito menor que a história que o escritor deseja exprimir. O escritor diante da página em branco está à medida do humano.


Perguntam sobre qual é a intenção do poeta ou do ficcionista com aquilo que escreve: “O que o autor quis dizer com isso?”. Foste compreendendo que a pergunta pressupõe que o autor “saiba” o que quer dizer quando escreve. Quem faz essa pergunta desconsidera que o poeta também deseja descobrir alguma coisa com o que escreve. A duras penas, descobriste que o escritor não está consciente de tudo que sabe sobre um determinado tema antes de escrever sobre ele. Produzir literatura é um ato de descoberta do mundo e de si, ou de enganar-se de modo mais satisfeito.


Por isso, não escreves jamais um poema para revelar o que sabes, o que sentes, mas para inquirir o mistério do que não podes compreender; sabes que não se compõe um romance, um conto para expor um conhecimento ou impor uma ideologia. Escreve-te: para dar vazão a um exprimir que é indissociável do investigar; escreve-te para poder unir o ato de narrar ao ato de buscar dar luz àquilo que ainda não está evidente para quem escreve.


Só como prática poética de descoberta a literatura poderá ser fonte de descoberta também para o leitor. Fora isso, deriva-se para outros mundos; não literários. Escreves, portanto, para desvendar o que queres exprimir. Escreves para interpretar a realidade, considerando que, na interação entre o que existe fora do Eu e a matéria subjetiva que elabora a realidade, existe dúvida, incerteza, instabilidade, desconhecimento e também, sobretudo, desejo de saber.


Escreves para descobrir. Escreves para procurar. Escreves para escavar.

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